Durante 9 anos, a Cidade do Saber, em Camaçari, foi tudo isso, mas, nos 8 anos de gestão do ex-prefeito Elinaldo Araújo (União Brasil), foi colocado em segundo plano. Alunos e professores deixaram o lugar, cedido à Universidade Federal da Bahia (UFBA).
De volta à Prefeitura de Camaçari, Luiz Caetano (PT) decidiu revitalizar o local. Para isso, é preciso equacionar as finanças e viabilizar investimentos que permitam recuperar a estrutura física e contratar, de novo, profissionais para oferecer todas as modalidades de antes.
A previsão é retomar os cursos gradativamente a partir do segundo semestre. Mas, antes, a secrertária de cultura, Elci Freitas, tem um longo caminho a percorrer. Para começar, assim que assumiu a pasta, Elci precisou devolver R$ 2,5 milhões referentes à lei Paulo Gustavo, que não foram usados por falta de projetos na gestão anterior.

Além de perder o dinheiro, a devolução compromete a aprovação de projetos futuros. Motivo pelo qual a secretária aproveitou uma agenda em Brasília para conversar com a ministra da Cultura, a baiana Margareth Menezes para fazer com que o município não fosse prejudicado. Margareth, aliás, conhece bem a Cidade do Saber. Ela foi a ‘estrela’ do filme publicitário de lançamento do espaço em 2007.
Sem recursos
Sem os recursos da Paulo Gustavo, Elci prepara o lançamento de editais da Lei Aldir Blanc, pouco menos de R$ 2 milhões, para ativação cultural e seleção de oficineiros, que já poderão ministrar suas oficinas na Cidade do Saber. Se tudo der certo, a partir de julho.
Descontando os editais, a secretaria tem quase nenhum recurso para investir na Cidade do Saber e demais equipamentos culturais da cidade. A maior surpresa da titular da pasta foi o valor pago pela secretaria das obras de requalificação de praças de Camaçari.
“A gente já chegou aqui encontrando coisas absurdas. Essas obras que foram empréstimos, quem paga é a cultura”, indigna-se Elci Freitas. As praças Abrante e Desembargador Montenegro, além do Cineteatro, foram incluídas no orçamento da cultura como parte do ‘centro histórico’1, sem que houvesse nenhum tipo de tombamento. Essas obras consumiram até agora R$ 3,750 milhões do município, além do valor emprestado pela Caixa, totalizando R$ 6 milhões.
Reforma da reforma
A situação não seria tão alarmante se a reforma, executada na gestão anterior, não tivesse deixado tantos problemas. O valor gasto foi de R$ 12 milhões, conforme anunciado, mas o equipamento entregue em 2024 estava pior do que quando a reforma começou, segundo os funcionários efetivos. Uma auditoria vai ser realizada para apurar a aplicação dos recursos.
O palco do teatro – o 2º maior da Bahia, com 568 lugares -, ainda tem infiltrações e, quando chove, as goteiras atingem até a plateia. A porta de emergência não abre. “Estão chamando de boate Kiss 2, se tiver uma emergência ninguém sai”, diz a secretária.
O placar eletrônico da quadra, previsto no edital da reforma, não foi instalado. As instalações precisam de reparos elétricos, hidráulicos, ‘ a reforma da reforma’, diz Elci, que vai precisar solicitar crédito suplementar à Câmara Municipal para realizar as intervenções.

Gílson Pinheiro é gerente de manutenção da Cidade do Saber e não esconde a indignação com tudo que viu nos últimos 8 anos. Ele participou da construção do complexo e também acompanhou reforma. Nesse período, conta que gastou R$ 3.700 de exames, o cabelo caiu, abriu um buraco na cabeça, os pés descamaram e, após os exames, o diagnóstico foi de stress Ele sentiu literalmente na pele o sucateamento do espaço.
“Eu vi gente deixar a cadeira de rodas com a natação, meninas negras saindo daqui para o Bolshoi, e depois vi tudo se acabar”, lamenta.

Histórias
Apesar das dificuldades, a simples possibilidade de retomada da Cidade do Saber mexe com a memória de quem passou pelo lugar. Iraci Alves Vieira, 52 anos, é mãe de Alexandre Vieira, que entrou no curso de ballet aos 9 anos e se tornou bailarino do Bolshoi.
“Uma vez chegaram os professores da Rússia, do Bolshoi de Santa Catarina, e fizeram uma seleção com eles. Foram umas 8 crianças”, lembra d. Iraci. Desses, quatro passaram no teste definitivo em Joinvile. Luiz Caetano fez lá uma casa social, em Joinville, onde um “pai social” cuidava das crianças.
Quando surgiu a oportunidade, a mãe não pensou duas vezes. “É o sonho dele, fez de tudo para poder passar nessa seleção, eu não vou impedir ele de ir”. Lembra D. Iraci, que ligava todos os dias para o filho.
Depois de 8 anos no Bolshoi, já com nível técnico, Alexandre foi para Blumenau e iniciou a graduação em dança, mas teve que interromper o curso na pandemia, faltando 4 semestres para se formar. De volta à Bahia, trabalhou como ‘drag queen’ em Salvador e fez parte de uma montagem da coreógrafa Deborah Colker há cerca de seis meses.

Atualmente, vive a expectativa de retornar à Cidade do Saber, ‘para ensinar ou dançar’, enquanto aguarda oportunidade para retomar o curso de dança na UFBA.
Caçulinha entre as crianças selecionadas para o Bolshoi, Edlaynne da Silva Santos, que atende pelo nome artístico de “Pérola”, nem pensava em fazer ballet.
“Na época foi uma loucura quando abriu isso aqui (2007). Os pais todos ansiosos, todo mundo queria”. Pérola se inscreveu em ballet, capoeira e teatro. ‘Não podia escolher, entrava onde tinha vaga. Eu queria capoeira, minha irmã queria teatro, mas surgiu a vaga no Ballet’, conta.
Além da dança, Pérola fez aulas de canto e atualmente se apresenta com voz e violão na noite de Camaçari. Voltou ballet recentemente, depois de 8 anos parada, e, segundo suas palavras, se sentiu ‘humilhada’. Mesmo sem conseguir realizar todos os movimentos, não esconde a satisfação de voltar a um estúdio. “Bateu saudade”, diz.
Pérola foi outra que sofreu com o fechamento da Cidade do Saber. “Fiquei muito triste quando fechou. O projeto deu oportunidade a muita gente, hoje se não tiver dinheiro não faz ballet, artes marciais. A gente ganhava tudo”, lembra.
Aline Porto também foi aluna da Cidade do Saber desde o primeiro ano. Veio da Casa da Criança, onde já fazia ballet. Em 2009 foi para o Bolshoi. “Recebi muitas oportunidades, viajei bastante, fiz ginástica rítmica, foi a melhor época da minha vida”, recorda Aline que ‘morava’ na Cidade do Saber, para onde ia depois da escola e só voltava depois das 19h30.
“A gente construiu uma companhia de ballet, eu apareci em outdoor”, diz Aline, que hoje ensina ballet para crianças. “Quando acabou a companhia, acabou o sonho de muita gente, uma colega teve depressão, foi muito triste”, recorda.
Ensino mútuo
O abandono da Cidade do Saber não afetou apenas os ex-alunos. Quem ajudou a formar esses jovens também sentiu muito a interrupção do projeto. Débora Bittencourt, ou “Tia Débora”, como ficou conhecida, hoje vive no Rio de Janeiro, onde trabalha como Relações Públicas.
Ela participou, em 2005, da 1ª conferência de cultura de Camaçari, quando Luiz Caetano teve a ideia da Cidade do Saber. “Vi o projeto nascer”, lembra Débora. “Fazia os olhos brilharem trabalhar a perspectiva de desenvolver pessoas”.
Renata dos Anjos foi professora de ballet até 2016 e acompanhou o desmonte do corpo docente. “O professor acha que vai ‘só’ transmitir conhecimento, mas a troca é gigantesca”, diz. Ela lembra que o projeto movimentou a cidade.
“Camaçari colhe frutos até hoje, foi uma possibilidade de vida para jovens sem perspectiva. As alunas hoje dão aula, coreografam, fico feliz por ter sido uma sementinha”, orgulha-se. Principalmente quando é parada na rua por alguém que diz: “Pró, eu fui sua aluna”. Para Renata, a Cidade do Saber ‘deveria ter sido copiada para toda a Bahia’.
Mas, nem só de dança era feita a iniciação artística do complexo. Rubem Damasceno é diretor teatral e viu passar pelas suas turmas dezenas de jovens, alguns deles, hoje, atores profissionais.
“A Cidade do Saber pra mim foi um dos maiores momentos enquanto profissional das artes, porque aquilo ali era a realização de um ideal, do que a gente imagina, de educação através da arte e dos esportes”.
Ele se orgulha quando vê ex-alunos que conseguiram tirar DRT, ‘estão tendo experiências profissionais gigantescas, inclusive na rede Globo’, destaca, citando o jovem Caíque Copque, que acaba de participar do ‘The Masked Singer Brasil’. Além de outros que estão fazendo teatro pelo Brasil.
“Era um ensino humanizado onde as boas relações, o exercício da afetividade, acolhimento, abraço, todos se relacionando muito bem, diversidade de corpos, de gêneros, sexualidade, isso para a educação de uma cidade era grandioso”, recorda Rubem.
A Tarde
More Stories
Candeias: Cestas e Peixes da Semana Santa começam a ser entregues para mais de 20 mil famílias nesta quarta-feira (16)
Prefeitura de Madre de Deus entrega mais de 40 toneladas de alimentos com a Cesta Santa nesta quinta (17)
Brasil enfrenta onda de golpes virtuais; jovens são boa parte das vítimas