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Conflito comercial entre EUA e China prenuncia uma nova guerra fria

 

Jack Ma, fundador do gigante do comércio eletrônico Alibaba, não criará mais um milhão de empregos nos EUA, como havia prometido há um ano. “O compromisso foi feito sob a premissa de uma associação amistosa entre os Estados Unidos e a China e de relações comerciais racionais, mas a situação não é mais a mesma”, declarou o magnata nesta semana à agência Xinhua.

As duas potências estão imersas em uma guerra comercial que tornou a eclodir nesta semana. Depois de ter imposto tarifas sobre 60 bilhões de dólares em importações chinesas, Trump determinou à Administração que aplique mais taxas sobre produtos num valor de 200 bilhões, e ainda ameaça sobretaxar outros 267 bilhões. O Governo de Xi Jinping revidou com seus próprios impostos a produtos norte-americanos, no valor de 60 bilhões de dólares nesta última rodada, e recusou-se a participar de conversações que os EUA propunham que ocorressem na semana passada em Washington. Na avaliação do centro de estudos alemão MERICS, a disputa já entrou em “níveis perigosos”.

Também na semana passada, Trump voltou a insistir que “chegou a hora de fazer frente à China” para que esse país permita uma balança comercial mais equilibrada, abra seus mercados e garanta o respeito à propriedade intelectual. “Não resta outra opção. Já demorou demais. Estão nos prejudicando”, declarou ele ao canal Fox.

Em curto prazo, essas medidas não vão causar um dano irreparável à China. O JP Morgan Chase calcula o impacto em 0,6% do PIB da segunda maior economia mundial. O Conselho de Estado (Poder Executivo chinês) aprovou medidas para ajudar as empresas que enfrentem dificuldades, o que inclui desde o corte de custos alfandegários a mais facilidades de financiamento para as pequenas empresas exportadoras.

“A ideia de que a China é um país dependente de seu comércio exterior está um pouco antiquada; seu mercado interno representa uma proporção cada vez maior do seu crescimento. Também é hoje menos dependente de suas vendas aos Estados Unidos, negocia muito mais com os países do Índico e Pacífico”, comenta por telefone Hervé Lemahieu, pesquisador do Lowy Institute, em Sydney (Austrália), e diretor do projeto Índice de Poder da Ásia, que mede o poderio real dos países na região da Ásia-Pacífico.

Em longo prazo, se a disputa continuar se agravando e a Administração Trump intensificar seus esforços para deixar a China de lado na economia mundial, as consequências podem ser muito mais sérias. “A integração econômica serve como contrapeso à tensão militar”, explica Lemahieu. Eliminado esse contrapeso, o equilíbrio se rompe, e cresce o risco de uma escalada militar.

Em Pequim, declarações como as de Trump estimulam entre os funcionários do Governo a visão de que a guerra comercial faz parte de uma estratégia mais ampla de seu competidor para bloquear a ascensão chinesa no cenário mundial, e também de que a China se tornou muito dependente da tecnologia e dos produtos norte-americanos.

As duas potências já rivalizam faz tempo em áreas como tecnologia e controle do mar do Sul da China, e a desconfiança mútua vem crescendo. Em sua última avaliação de segurança nacional, os Estados Unidos qualificaram o gigante asiático como um “rival estratégico”. Além disso, aprovaram legislação para vetar os investimentos chineses no setor tecnológico e intensificou os gestos para Taiwan, uma ilha que a China considera ser parte do seu território. Na sexta passada, Washington impôs sanções a um departamento do Ministério de Defesa chinês por ter comprado mísseis e caças de Moscou, alegando que isso viola suas sanções contra a Rússia. Não é algo que diga respeito unicamente à Casa Branca: o sentimento de afronta por supostas políticas abusivas da China se estende por todo o espectro político dos EUA. A Europa e o Japão compartilham também muitas das mesmas reservas, embora divirjam sobre como respondê-las.

Já Pequim, que durante anos seguiu o conselho de Deng Xiaoping de “ser paciente e esconder a força”, mas que sob Xi Jinping aspira a uma ordem mundial que reflita melhor os seus interesses, não pensa aceitar as exigências de Washington. Aos seus olhos, isso seria uma humilhação e colocaria em perigo o papel de protagonista no tabuleiro global, que considera seu direito histórico.

Mas se prepara para o que pode ser uma profunda mudança em sua relação com os Estados Unidos. Uma mudança que alguns em Pequim chegaram a qualificar como “nova guerra fria”, embora a situação hoje seja muito diferente da que confrontou Washington à extinta União Soviética. As economias das duas potências atuais estão muito imbricadas, e os dois países mantêm muito mais laços; o mundo não está dividido em dois blocos; a rivalidade militar de ambos se restringe à região da Ásia-Pacífico.

“Quando os Estados Unidos qualificam a China como rival estratégico, as relações entre eles vão enfrentar uma mudança estrutural profunda”, escrevia no mês passado o alto assessor governamental Long Guoqiang em um comentário de grande repercussão no Diário do Povo, órgão oficial do Partido Comunista da China. “Sendo as duas principais potências, é normal que a China e os EUA mantenham tanto cooperação quanto competição… Devemos deixar de ilusões sobre a guerra [comercial], mas também temos que nos manter racionais e nos empenhar para manter a estabilidade geral.”

Em parte pela deterioração de sua relação com os Estados Unidos, a China intensificou seus esforços para estender pontes a outros países. A relação com a Rússia se aprofundou. Sua rede de relações econômicas na África ganhou mais um impulso no começo de setembro com a promessa de um novo financiamento de 60 bilhões de dólares. Está previsto que em outubro o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, viajará a Pequim, onde foi friamente recebido por Xi na sua última visita, há quatro anos. A China, opina Lemahieu, “tenta manter tantos sócios quanto puder”.

É improvável que a situação melhore nos próximos meses. Mas o próximo ponto de inflexão pode ocorrer em novembro. Depois das eleições para Congresso nos EUA e de uma cúpula do G20 na Argentina, onde Trump e Xi se verão frente a frente, o panorama talvez seja diferente.

 

 

 

El Pais