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Cidade Santa, em Dias D’ávila, pode se transformar num dos maiores centros de peregrinação

 

Católica desde a infância, a professora aposentada Theresinha  Dantas Estrela aproveitou o convite do filho, Rafael, e foi conhecer, na tarde de 4 de abril, a Cidade Santa, área de um milhão de metros quadrados em Dias D’Ávila, adquirida pela Igreja Católica com o objetivo de erguer na região metropolitana de Salvador um dos maiores centros de peregrinação do país. A primeira impressão da professora feirense, ao ver as obras do santuário, foi a de que o projeto lembra Canção Nova, comunidade criada em Cachoeira Paulista (SP), em 1978, para abrigar jovens dispostos a deixar a família para pregar o evangelho.

“Só pode ser uma revelação de Deus, do meio do nada você querer construir uma obra grandiosa. A partir do sonho de um homem, Jesus falou ao seu coração”, diz a professora, para quem todo ser humano nasceu para refletir Deus, mas nem todo mundo encontra o caminho.

No caso do santuário baiano, o homem que sonhou foi o padre Paulo Avelino, ex-pároco da Igreja de Nossa Senhora da Luz, Pituba,  há 10 anos à frente da Paróquia de Nossa Senhora do Resgate. Para quem acredita, são os desígnios de Deus.

O piauiense, que veio a Salvador cobrir as férias de outro sacerdote,  hoje coordena um grupo de 62 católicos que mantêm um programa de rádio no ar, campanhas de arrecadação de fundos e, agora, o projeto de construção de um centro de adoração a pouco mais de uma hora da capital.

O caminho para quem quer imitar Cristo pode ser difícil, mas para chegar à Cidade Santa o único grande obstáculo é uma estrada de barro, de sete quilômetros, após o bairro de Nova Dias D’Ávila.

No terreno, já estão prontas uma casa para os missionários e uma das 10 capelas que constam no projeto arquitetônico de Carlos Campelo, católico fervoroso, que não cobrou pelo seu trabalho.

A igreja afirma que, por ora, não existe o projeto de ter fiéis morando no terreno, como acontece no interior de São Paulo. Apenas, os 22 casais de missionários que vão tomar conta da área.

As obras ainda estão no início, mas já há celebração de missas e grandes eventos em datas especiais, como a Semana Santa, o Réveillon e o aniversário de Salvador, que levou milhares de católicos a essa cidade, emancipada de Camaçari apenas em 1985, e que agora tem a chance de começar a entrar no mapa do turismo religioso.

Isso caso fiéis e empresários de turismo compartilhem a fé do padre e ocorra uma multiplicação de pousadas ao redor do empreendimento.

A escolha do local foi uma questão de oportunidade. “Olhamos três terrenos antes e, então, decidimos por esse”, afirma o designer Fábio Nascimento, conhecido como Binho, que integra a equipe de missionários do padre Paulo Avelino e coordena o andamento das obras.

O padre não quis revelar o quanto foi pago, mas argumenta que conseguiu um bom desconto. Um corretor de imóveis da cidade estima que o valor de mercado do terreno seria em torno de R$ 7 milhões. De acordo com a igreja, o dinheiro provém basicamente de doações dos fiéis e da venda de um apartamento do padre, que agora vive em instalações paroquiais. Há ainda a pequena contribuição de uma loja de souvenirs católicos na Igreja do Resgate.

O santuário em construção prevê espaço para 6.800 pessoas sentadas. Deve ficar pronto até o fim do ano que vem, a depender do fluxo de doações. Mas o calendário de eventos já existe, mesmo com instalações improvisadas. Quando há grandes celebrações, erguem-se toldos. E na ausência de lanchonete ou restaurante, os católicos se alimentam de salgados vendidos no quiosque de souvenirs, ou levam lanches. No pátio cabem 100 mil pessoas em pé, segundo avaliação da igreja. No terreno ainda sem melhorias, destinado ao estacionamento de carros, há cerca de três mil vagas. No horizonte, a sensação de que a conclusão da obra vai levar muito tempo. “As obras de Deus são contínuas”, afirma o padre.

Inspiração

Durante duas semanas, o arquiteto Carlos Campelo desenhou um projeto por dia, mas não ficava satisfeito com o resultado. Até que numa saída para fumar teve uma inspiração definitiva. Assim como o padre, Campelo também credita o projeto final à intervenção divina e às sugestões do próprio padre. Uma das características das edifícios projetados para a Cidade Santa é o aproveitamento da ventilação natural. “Projetamos para que não haja necessidade de uso do ar-condicionando” , diz o arquiteto.

“Deus queria algo mais de mim”, afirma o padre Paulo Avelino, que deixou o interior do Piauí e  chegou a Salvador em 2000 para uma estada temporária enquanto planejava uma temporada de estudos em Roma. Mas, com a morte do padre Casimiro, assumiu a titularidade da Paróquia de Nossa Senhora da Luz, na Pituba, onde ficou por 10 anos. Em 2011, mudou-se para a Paróquia de Nossa Senhora do Resgate, no Cabula, onde conduz concorridas missas.

Principal referência para a Renovação Carismática na Bahia, Avelino atribui a decisão de construir a Cidade Santa a um chamado divino. “Depois de cinco anos como padre, senti que Deus pedia mais de mim. Não era só paróquia, não era só celebrar”, afirma o padre. Avelino define a obra que está liderando em Dias D’Ávila como um ministério sacerdotal para ajudar as pessoas e promover oração, libertação e cura. “Chega uma hora nos grupos de oração em que isso vai ficando claro, não só para mim, mas para as outras pessoas”, declara.

Ele afirma que no início pensou na Cidade Santa como um espaço de celebração, mas que, com o tempo, as orações foram mostrando que se trataria de um complexo de fé, um lugar que também servisse como opção para quem deseje passar o dia ou o fim de semana, envolvido em atividades religiosas e com acesso a serviços. Pensa-se em um restaurante, uma loja e uma pousada dentro da Cidade Santa. “Eu quero uma obra grande para libertar as pessoas. Um pronto-socorro que seja realmente um local de encontro com Deus”, diz o padre, que, assim como todos os envolvidos na obra, menciona regularmente um direcionamento divino.

Como se pode imaginar, não foi possível ouvir o outro lado. Mas fontes ligadas a setores progressistas da igreja consideram o projeto megalomaníaco. O santuário, aliás, é mais um demarcador de fronteiras entre a porção católica entusiasta do modo de vida pentecostal e o catolicismo tradicional, menos afeito a manifestações atribuídas ao Espírito Santo e resistente ao modo de vida adotado pelos carismáticos. Um jeito de se relacionar com a fé que cada vez mais lembra os neopentecostais.

Um exemplo é a autônoma Deise Fonseca, que teve o aniversário mencionado no ar durante o programa Minha Fé do último dia 8 de abril. “Parabéns à nossa quase sócia”, disse o locutor. Presença constante na lista de ouvintes que ligam para participar e nas missas realizadas na Cidade Santa, Deise organiza caravanas com pessoas em busca de algum tipo de cura e as leva em vans para Dias D’Ávila.

Uma destas pessoas é Roberto Silva Paim, um jovem alcoólatra que foi parar no hospital após uma briga, durante uma bebedeira, e agora tenta se afastar do vício. “Estou há 23 dias sem beber”, comemora o jovem, que desde o primeiro gole, aos 13 anos, nunca havia passado tanto tempo abstêmio.

Ex-funcionário de uma fábrica de utensílios domésticos em Conceição do Jacuípe, luta não apenas para não consumir álcool, mas também para escapar da depressão. No dia seguinte à morte do  pai, há quatro anos, ele não conseguiu ir trabalhar e, desde então, a sua tendência à tristeza se acentuou. Assim como o consumo de bebidas. Durante a recente internação para cuidar das feridas provocadas pela briga com o primo, uma enfermeira o apresentou a Deise Fonseca, que o convenceu a buscar refúgio na fé.

Questionado se preferia não ser identificado na matéria, disse que não se importava. Depois de encerrada a entrevista, voltou para dizer que, se possível, gostaria de ter seu nome destacado, para mostrar em sua cidade que está buscando tratamento.

É o perfil dos convertidos que estão sendo arregimentados por essa parte da igreja, focada em cura e em milagres, depoimentos emotivos e na manifestação do Espírito Santo, seguindo os preceitos da Renovação Carismática Católica, movimento surgido em 1967 nos Estados Unidos e que está associada ao Pentecostes, a festa cristã que celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo. Aliás, não fossem a enorme imagem de Nossa Senhora no pátio e os terços segurados por alguns fiéis, qualquer pessoa que seja levada a um evento na Cidade Santa pode pensar que se trata de um culto evangélico.

Milagre

A própria Deise considera que recebeu um duplo milagre ao cair no poço de um elevador em 2018, no segundo andar de um prédio. “Foi o momento mais forte de minha vida. Nesse momento, foi o resgate de Deus”, declara. Além do fato de ter escapado da morte, tanto pela queda quanto pelo risco de eletrocução, Deise relata que, como não tinha plano de saúde nem dinheiro para bancar uma cirurgia na primeira vértebra – que ficou fragmentada após a queda –, teve que ir ao Hospital Geral do Estado, o que não resolveu totalmente o problema. “O SUS não cobria porque eram muitos pinos e chapas, então optei por colocar um colete”.

Quando foi fazer o exame de raios-X, o médico lhe perguntou onde havia sido a fratura porque ele não a enxergava. Não havia vestígios, segundo ela, de que a vértebra havia sido quebrada um dia. O médico lhe disse então para retirar o colete e ela se negou. “Eu não acreditava na cura”, diz Deise,  interrompendo brevemente a resposta para pedir perdão a Deus por sua incredulidade. “Um dia, o Senhor me perguntou até quando  ficaria de colete”, disse. Indagada sobre como Deus lhe teria respondido, afirma que, através da oração, o Senhor havia falado ao seu coração: “Ele não queria que ninguém tocasse em mim”.

Fiéis que acreditam na cura pelo Espírito Santo são o público-alvo do novo santuário e também os seus maiores financiadores. Assim que foi inaugurada a primeira capela do santuário, no último mês de março, o programa Minha Fé começou a divulgar a campanha Ouro de São Miguel, em que a igreja pede aos fiéis a doação de anéis, correntes e pulseiras de ouro para a construção da segunda capela, em homenagem a esse santo.

Pentecostalismo

Quando o polonês Karol Wojtyla (João Paulo II) assumiu o pontificado em dezembro de 1978, a Igreja no Brasil começava a fortalecer o seu pentecostalismo. Em fevereiro daquele mesmo ano, havia sido criado o Canção Nova. Dois anos depois, era inaugurada a Basílica de Aparecida, que se tornaria o maior centro de peregrinação do País.

Em sintonia com o novo papa, as autoridades eclesiásticas brasileiras começaram, então, a privilegiar as pastorais de massa, em detrimento dos pequenos grupos, e se tornaram hegemônicas a partir de 1990, depois de combater com sucesso os adeptos da Teologia da Libertação, que pregava a opção preferencial pelos pobres.

Para o sociólogo Jorge Alexandre Alves, professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro, integrante do movimento Fé e Política, grupo não confessional e apartidário criado em 1999 por religiosos progressistas, a Igreja acabou optando por uma espiritualidade intimista e baseada no êxtase religioso, em lugar de uma religiosidade que impulsionasse o engajamento social. E mesmo assim não conseguiu conter a perda de fiéis. “A despeito da boa vontade e de devoção sincera de muitos que foram formados ou que optaram por esse caminho, o que aconteceu foi que essas opções não impediram o avanço evangélico. Nesse sentido,  elas fracassaram”, afirma o pesquisador.

A noção de que há multidões retornando ao catolicismo é, na ótica do pesquisador, uma ilusão.  “Na verdade, boa parte dos peregrinos estaria em uma missa perto de casa, caso não tivessem essa opção. Se eu estivesse errado, o catolicismo não teria perdido quase 20% dos fiéis entre 1990 e 2010, de acordo com o Censo”, assinala.

“Em alguns lugares do Brasil, como o Rio de Janeiro, podemos dizer que muito da capilaridade social que ela possuía foi perdida. E esse espaço  acabou ocupado com muita perspicácia pelos evangélicos pentecostais e neopentecostais”, avalia o pesquisador, que é cético quanto à reversão do quadro.

 

 

A Tarde